Teatro

Bárbara Reis e Ivy Souza estrelam o espetáculo “Ruth & Léa”

Fotos: Fernando Macedo

Quando a icônica atriz Ruth de Souza partiu aos 98 anos, em 2019, o diretor Luiz Antonio Pilar sentiu que havia ficado em débito com a pioneira e desbravadora artista. Logo depois da pandemia, foi a vez da grande Léa Garcia nos deixar, aos 90, e, com isso, mais outra conta ficou em aberto. Disposto a liquidar de uma vez por todas com essas dívidas (históricas), Pilar, que foi indicado ao Emmy Awards Internacional — pelo elogiado trabalho no remake de “Sinhá Moça” (2006), da TV Globo — e venceu o Prêmio Shell de Melhor Direção, na 34ª edição, por “Leci Brandão, na Palma da Mão”, decidiu, enfim, levar aos palcos a grande homenagem que gostaria de ter feito em vida para essas duas figuras seminais da cultura negra brasileira: a peça “Ruth & Léa”, que estreia no dia 7 de junho no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, com Bárbara Reis e Ivy Souza nos papéis principais.

 

Mas o tributo não se reduz apenas às trajetórias delas. “Há pretos e pretas que fizeram coisas fundamentais e que ninguém sabe”, lembra Pilar, que elencou ainda para a dramaturgia da montagem, assinada pela celebrada roteirista Dione Carlos — ganhadora do Prêmio Shell de Dramaturgia, na sua 33ª edição —, o multiartista Abdias do Nascimento (1914-2011), fundador do Teatro Experimental do Negro, um divisor de águas na história sócio-político-cultural brasileira nos anos 1940; o ator Aguinaldo Camargo (1918-1952), e Mercedes Baptista (1921-2014), primeira bailarina negra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

A vontade de idealizar um trabalho sobre Ruth e Léa — primeira brasileira a concorrer à Palma de Ouro no Festival de Cannes, por “Orfeu Negro” (1959) – começou, na verdade, em 2003, explica Pilar, e por força do acaso. “A Ruth me chamou à casa dela, era um sábado. Ela tinha esse hábito e eu gostava muito de visitá-la. Chegando lá, ela costumava falar de TV e cinema, entre um biscoitinho e um café, e, para a minha surpresa, também estava a Léa. Eu e ela não sabíamos que iríamos nos ver lá. Então, Ruth me explicou o seguinte: ‘Todo mundo acha que somos inimigas, mas não somos’”, recorda ele.

 

Já naquela época, a reverenciada atriz, primeira brasileira a ser indicada a um prêmio internacional — Melhor Atriz no Festival de Veneza por “Sinhá Moça” (1953) —, fez uma crítica sábia e absolutamente contemporânea sobre a escalação das atrizes pretas no showbiz brasileiro. “Ou é a Léa, ou sou eu, ou é a Zezé (Motta). E isso dá a impressão de que estamos disputando entre nós. São eles que nos colocam nessa posição e nos oferecem pouquíssimas coisas. Eu queria muito fazer uma peça com a Léa, sob a sua direção”, confidenciou Ruth a Pilar, durante o encontro.

 

Os anos foram passando, e o tempo e as agendas atribuladas dos três não ajudaram, mas ali foi plantada a semente que agora finalmente germina potente no palco. No espetáculo, cujo cenário de Lorena Lima remete a um estúdio de cinema, duas atrizes, Zezé e Elisa — em homenagem a Zezé Motta e Elisa Lucinda —, se encontram para o primeiro dia de ensaio de um filme musical sobre as vidas de Ruth de Souza e Léa Garcia, respectivamente, Bárbara Reis e Ivy Souza. Enquanto se preparam, com figurinos assinados por Rute Alves, – que se inspirou na obra do falecido escultor Emanoel Araújo, curador e fundador do Museu AfroBrasil, muito amigo de Ruth e Léa – e sob a luz de Gustavo e Marcelo Andrade, elas refletem sobre as trajetórias dessas duas icônicas atrizes e compartilham seus desejos, anseios e realizações. Este encontro, em busca de respostas, é testemunhado por Gláucia Negreiros, pianista do espetáculo.

Após uma experiência de sucesso na novela “Todas as Flores”, de João Emanuel Carneiro, Pilar volta a dirigir Bárbara Reis. “Agora, no teatro, tenho adquirido um novo olhar a partir do olhar cênico dele, com a liberdade de arriscar e também ser ridícula. É um olhar generoso, que faz toda a diferença na construção das cenas. Falamos desses dois ícones e da cena teatral preta da época delas. A mensagem principal é: nada se constrói sozinho”, explica a atriz.

 

“É um misto de euforia e realização viver essa experiência”, afirma ela. “Retornar ao palco após sete anos afastada me traz um senso de responsabilidade grande, mas também desprendimento. O maior desafio nos ensaios tem sido conter a minha energia para dar vida a Ruth, que era mais contida do que eu”, entrega.
Durante este processo, Bárbara e Ivy, que não se conheciam, foram naturalmente criando laços. “Tem sido maravilhoso. Ivy é uma atriz sensível, generosa e muito aberta. Nossa conexão foi imediata e está sendo levada para a cena”, conta.
Ivy, que conheceu Léa em 2019, quando a veterana atriz foi assisti-la no espetáculo “Isto É um Negro”, vibra com a oportunidade de encarná-la no palco. “Está sendo muito marcante para mim. Ela sempre foi uma das minhas maiores referências, tenho profunda admiração por Léa. Sendo uma atriz negra, tenho a consciência de como ela e a Ruth puderam mobilizar tantas coisas com as parcas possibilidades que tiveram, cada uma com seu temperamento e trajetória. E fico pensando: qual o futuro é possível plantar agora? Para que um artista negro possa viver a experiência de exercer a sua arte como ofício, é preciso suporte e rede”, reflete.

 

Pilar esteve em ambos os velórios das atrizes icônicas, que aconteceram em um espaço de quase cinco anos, com a pandemia no meio, e é testemunha ocular do movimento de inclusão de pessoas negras na dramaturgia brasileira que, por décadas e décadas, foi marcada por desigualdades bárbaras, marginalizando ou estereotipando personagens pretos seja no teatro, no cinema ou na televisão.

 

“Em 2023, quando Léa morreu, cheguei ao velório, no mesmo lugar, no Teatro Municipal, onde foi velado o corpo de Ruth de Souza, e daí me veio a ideia de fazer esta peça, a que elas queriam ter feito. Há ainda muitas e muitas histórias a serem contadas, porque nós ficamos silenciados durante muito tempo”, diz Pilar, que vem por aí com mais dois espetáculos, um sobre Neguinho da Beija-Flor e outro sobre Jovelina Pérola Negra.

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